terça-feira, 8 de março de 2011

A hipocrisia dúplice

As gerações andam à rasca.

No Magreb, no Médio Oriente mas também na Europa connosco.

Na Tunísia, no Egipto, na Jordânia ou na Líbia, os desgraçados, os deserdados e os desesperançados fartaram-se e revoltaram-se. Das injustiças, da corrupção e dos desvios dos rendimentos que sempre vão entrando. Vindos do petróleo, das ajudas dos americanos ou dos turistas ocidentais.

Na Europa anda-se à rasca, muitos pelo menos, com a falta de emprego, com os salários encolhidos, enfim com a falta de perspectivas de vida.

Tudo coisas que parece terem acontecido agora, nos últimos anos, mas que, na realidade, têm vindo a ser o pão-nosso de cada dia.

Na verdade, se desde há muito a corrupção, a miséria e o desrespeito pelos elementares direitos das pessoas e pelas suas condições miseráveis de vida, eram conhecidas como evidências nos países árabes, não nos podemos esquecer que a falta de emprego, os salários baixos e essa especificidade portuguesa dos recibos verdes, são uma realidade conhecida da Europa, seja nos subúrbios franceses, nos campos de morangos espanhóis, como nas cidades e campos do velho rectângulo peninsular.

E a verdade, também, é que, se as gerações mais novas sofrem cada vez mais com essas realidades e desesperam com a falta de perspectivas profissionais e sociais, vivendo à rasca, não é menos verdade que para que se tenha aguentado tanto essa desesperante situação, quem tem vindo vivendo muito à rasca tem sido a geração dos pais desses enrascados, que tem suportado a sobrevivência dos filhos que vivem em casa até depois dos trinta, lhes paga o sustento e até os vícios e com isso tem adiado a interpelação dos responsáveis e, em verdade se diga, o despertar da revolta dos jovens, há muito, à rasca.

Tanto lá, no Magrebe poeirento ou no Médio Oriente escaldante, como cá, na Europa limpinha e fresca.

E se é sempre de enaltecer o despertar para a realidade, convém não esquecer os anos de mansidão cúmplice ou encantamento fácil, em que os nossos enrascados viveram.

Já nos confins do areal escaldante esse adormecimento é mais tolerável e compreensível se atendermos ao nível de educação e ao conflito e  instabilidade política-militar da região.

Mas esperemos mais um tempo e vejamos o que nos trás esta tardia revolução árabe. Se mais democracia e progresso ou mais fundamentalismo islâmico e retrocesso civilizacional.

Se a revolta era genuinamente popular ou tinha a mãozinha do radicalismo religioso.

Mas se a esperança em que o mundo árabe possa converter-se à democracia e ao progresso é comovedora, também seria muito interessante perceber porque é que se dá tanta ênfase ao problema nessa região e se releva os mesmos sinais de indignação e revolta no mundo europeu.

É que, não é por haver democracia que as pessoas têm menos direito em ser ouvidas e em ser tidas em conta as suas manifestações. Mas a verdade é que é isso que tem acontecido, seja pela agenda e simpatia da comunicação social, seja pelo interesse geoestratégico da política ocidental.

Aliás, no que toca à expectativa de que algo possa acontecer em Portugal em função das últimas manifestações de descontentamento dos precários, pelo menos da minha parte, confesso que é pequena.

E por duas ordens de razão.

Em primeiro lugar, porque a importância e o realce dado pela comunicação social e pelos agentes políticos ocidentais é muito diferente e hipócrita, trate-se de manifestações ou distúrbios na Europa ou algures nos países árabes.

A realidade é que uns carros a arder e Tunes, uns poucos milhares de pessoas a manifestarem-se em Tripoli, a destruição de monumentos no Cairo, ou o pegar em armas e combater as forças militares dos regimes aí instalados, são interpretados como manifestações de descontentamento genuinamente espontâneo e de carácter revolucionário por todos compreendido e aceite, e com que eu também simpatizo, mas dezenas de carros a arder e manifestações de desobediência de jovens nos subúrbios de Paris, como ainda há pouco tempo aconteceu, ou mais de uma centena de milhar de pessoas a protestar nas ruas de Lisboa por mais de que uma vez num ano, ou confrontos entre manifestantes e forças policiais na Grécia, são coisas de somenos, praticadas por desordeiros e delinquentes a que não se pode dar importância a não ser se for necessário reprimir, prender e até levar a julgamento, mesmo que fossem sindicalistas passivos, quais perigosos terroristas.

Mas também, e verdade se diga, no que toca ao que se passa cá no burgo, a nossa democracia é tão madura, tão enraizada e forte, que o bom povo português quando se manifesta, de tão ordeiro e cumpridor que é, ninguém leva a mal ou passa cartão, mesmo se muitos milhares vão para a rua ou andam manifestamente descontentes com a situação

Mais uma vez a dualidade na análise a situações que, não sendo iguais, não deixam de ter pontos de contacto relevantes.

Só que a maneira de ser dos portugueses, não deixa de ser a principal causa de tal desconsideração.

É que de uma coisa podemos ter a certeza, as manifestações em Portugal, como aliás grande parte da sociedade, sofre da forte influência católica.

Aqui segue-se a liturgia mariana e quando temos de protestar, lá vamos, mas, tal como em Fátima fazemo-lo de joelhos perante o omnipresente, em voz baixa, submissa e ligeiramente cantada, qual Avé Maria, e a única coisa perigosa que seguramos são os paus de bandeira de madeira fina, mais parecendo velas ardentes na nocturna procissão a que se deu o mesmo nome.

Pode-se portanto dormir descansadamente, que nem em França do clã Le Pen, haverá revoluções contra a miséria dos subúrbios, nem em Espanha a vontade de independência Basca ou Catalã é para ser levado a sério, os mais alguns soldados britânicos, mais que provavelmente mortos em guerra alheia, agora no norte de África do petróleo serão importantes, ou os bons conselhos do BCE e das agências de rating que atiram Portugal para a recessão e para a miséria muitos dos precários e seus familiares que aos milhares se manifestarão nas ruas, terão importância ou levarão os coniventes com tal submissão a serem responsabilizados.

Nem tão pouco o perigo da Al-Quaeda estar a preparar-se para, qual abutre, mandar às urtigas a democracia e o progresso dos povos sublevados e caladinha como está, aguardar só o melhor momento para tirar proveito das irresponsabilidades dos imbecis lideres ocidentais e, em vez de mandar abaixo prédios elegantes em cidades ocidentais, permite-se assistir sentada à destruição das parcas infra-estruturas físicas e sociais dos países em sublevação, bem com o que, durante anos foi o mais poderoso inimigo do islamismo radical nesses países, o nacionalismo pan-árabe de carácter laico.

A tese agora dominante é que é importante ser revolucionário no continente alheio, destruir o poder de quem tem petróleo e não é das nossas simpatias, nem que para isso possamos levar com um exército de emigrantes magrebinos a bater-nos à porta, o brilhante Obama tornar-se tão baço como os tea party em política externa e novamente em tempos de crise, passarmos a gastar os milhões que nos faltam para combate-la, em expedições militares onde alguns morrerão, na esperança racista de que não sejam os nossos.

Não há dúvida que todos nós só vemos o que queremos e quando queremos, mesmo que a paisagem social ou politica seja a mesma há muito tempo. Aqui ou nas dunas do petróleo.

Precários, mancebos e outros que tais, lutem, mas lutem principalmente contra a vossa miopia e o vosso alheamento cúmplice. 

Citizen.red, 08/03/2011.