terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Coincidências intemporais


Coincidências intemporais.
 Por coincidência, os 2 últimos livros que li abordam uma temática comum que, sendo trágica, atendendo no entanto a que estamos no inicio da segunda década do séc. XXI, parece já bastante distante e pouco relevante. Refiro-me às sequelas da época colonial.
Curiosamente, tanto no livro de José Rodrigues dos Santos, “O Anjo Branco”, que li primeiro, como no último livro do premiado com o Nobel, Mario Vargas Llosa, ”O sonho do Celta”, em determinada altura da história, são abordados e retratados acontecimentos violentos na história do colonialismo europeu em África, a saber, em Moçambique, já nos anos setenta do sé. XX, e no Congo na transição do séc. XIX, para o século passado.
No caso do livro de Vargas Llosa, a história inicia-se tendo como pano de fundo o primórdios da efectiva colonização por parte da Bélgica no Congo, por aceitação e autorização das potências europeias e que deu lugar e tinha, aliás, como principal e mal disfarçado interesse, uma desenfreada exploração da árvore-da-borracha, em que as empresas europeias, com a cobertura e apoio policial do estado, exerceram uma inacreditável politica de escravatura, matanças e repressão das populações, com o objectivo de as obrigarem a se submeterem a trabalhos forçados na extracção da borracha, matéria-prima importantíssima para a economia do continente europeu.
As enormes riquezas existentes em África eram então alvo do interesse dos países europeus que começaram a descobrir o enorme filão económico que adviria com a sua exploração e que impunha a submissão dos povos aí existentes, onde a coberto da necessidade de os proteger e lhes proporcionar desenvolvimento, os obrigava, como contrapartida falsa, a trabalhar em regime de escravidão pura. 
O livro, narrando a vida de um irlandês pertencente ao Foreign Office que nas suas andanças consulares acaba por tomar contacto com a realidade do Congo governado pelo reino Belga, revela-nos a crueza da relação entre as potências ricas europeias e os povos africanos, unilateral e barbaramente submetidos aos seus interesses e vontades, acabando assim por despertar nele uma militância pelos direitos humanos e de denúncia internacional, particularmente no Reino Unido, que teria como consequência, ainda que indirectamente, a assunção de um forte sentimento nacionalista que nele foi despertando enquanto originário de uma nação, também ela submetida. A Irlanda.
Já no caso da história narrada pelo escritor/jornalista português, trata-se da descrição de um malfadado episódio ocorrido durante o final do período colonial português em plena guerra pela independência de Moçambique e que então se travava. Foi o famoso massacre de Wiriyamu. Famoso devido exclusivamente às persistentes denúncias internacionais de então.
Neste caso, o escritor confronta-nos com uma descrição não menos impressionante e cruel, mas impressionantemente real porque baseada em vários testemunhos, particularmente na de um oficial miliciano português que foi entrevistado pelo próprio autor na pesquisa entretanto realizada para a preparação do livro.
Assim, ainda se torna mais impressionante o relato que, retratando uma situação verdadeira e que aconteceu naqueles precisos termos, revela uma faceta do colonialismo português que se pretendeu persistentemente ocultar, fosse por vergonha colectiva ou propositado branqueamento do que infelizmente se passou.
A verdade é que o massacre de Wiriyamu, revelou uma crueldade atroz dos responsáveis directos e dos mandantes de tal operação militar, que mais não pretendia senão castigar de forma infame e criminosa, como aconteceu, populações que se considerava serem simpatizantes e colaborarem com os guerrilheiros da Frelimo, matando e mutilando a sangue frio homens, mulheres e crianças, durante a operação de limpeza e punição aos habitantes daquele lugar perdido no norte de Moçambique.
Uma verdadeira e reconhecida matança, que serviria para punir, vingar e deixar um aviso àqueles que ousavam desafiar o poder colonial.
Aliás, durante a narração percebemos que a operação das tropas especiais portuguesas foi directamente preparada pelo estado-maior militar, com a comparticipação e até supervisão da PIDE, que no local procedeu aos interrogatórios e incentivou à barbárie.
Quando no fim do livro se descobre, pela informação nele inserta, que a maior parte dos acontecimentos, nomeadamente a descrição do massacre de Wiriyamu, são reais, o que aliás é característica dos livros de J.R.S., ainda mais impressionante e horrível se torna o confronto com essa parte da nossa história colonial mais desprezível.  
Mas o “interessante” e simultaneamente historicamente impiedoso, é verificar que, ainda que em momentos temporalmente tão distantes, cerca de setenta anos, a defesa dos interesses do colonialismo, enquanto realidade politica-económica, foram tão bárbara, torpe e universalmente defendidos.
E se no caso do Congo estávamos nos finais do séc. XIX, longe, portanto, do Mundo, mesmo os países ditos civilizados, se encontrar receptivo para a problemática, distante, dos direitos humanos, tão flagrantemente e de forma impensável nos dias de hoje, ignorados e espezinhados, no caso português, tratava-se de tempos do pós guerra, já posteriores à revolução cultural emanada dos finais dos anos 60 e com a Europa em paz, com democracias enraizadas e em que os valores universais mais fundamentais eram em todo o lado apreendidos.
Em ambos os casos tratara-se de episódios bárbaros e violentíssimos, no caso do Congo de forma sistemática e que perdurou no tempo, ao contrário do caso português que foi um episódio de guerra, quiçá e naquela dimensão, isolado, mas em ambos com um objectivo de fazer prevalecer a todo o custo uma realidade de opressão e imposição civilizacional e cujos estados tentaram ocultar e desmentir quando a denúncia, que em ambos os casos ocorreram, ecoou por força e empenhamento de uns tantos inconformados e militantes.
A importância da literatura poder dar a conhecer tais casos, ainda que de forma romanceada, permite simultaneamente usufruir do prazer da leitura do instrumento literário, mas também conhecer a realidade histórica que ele transporta.
No caso destes dois livros e destes dois autores, tão diferentes, mas tão importantes cada um no seu contexto editorial próprio, o que aconteceu foi exactamente isso.
E se a vastidão do universo atingido pela literatura do Vargas Llosa é incomensuravelmente maior e o tema é também mais universal e por isso comporta um maior e mais visível impacto, a importância da questão levantada pelo autor português, apesar de ser mais circunscrito é, também por isso e pela verdade dos factos, relevante e até fundamental para ajudar a uma maior consciência e conhecimento da nossa História mais triste.
Se os lerem não perdem nada.
Citizen red, 01-02-2011